Ele brinca com o cachorro.
Bebendo seu café ofende o jardineiro que mais uma vez esqueceu de regar sua primavera.
Presente da vó quando ainda era criança.

O tempo é quente, tá tudo secando.
Dentro do paletó ele limpa o suor que já desce da testa.
Ele xinga mais uma vez olhando pro céu.
O tempo é quente, mas de tarde vai chover e o trânsito vai parar.
Alguém atravessa a rua na sua direção, ele espera antes de abrir o portão do condomínio.
Não dá pra confiar em mais ninguém.

Ele xinga um motorista que passa sem reparar que estava atravessando na faixa.
Ninguém respeita mais ninguém.

Chega no estacionamento na frente do condomínio e cumprimenta o segurança com um aceno de cabeça que lhe é repondido com um “bom dia doutor”.

Entra no SUV.
De repente um paraíso se abre: O conforto da tecnologia que lhe permite o isolamento.
Música e clima frio. Pra que mais? Ele pensa.
Coloca o terno no banco e ajeita o colarinho olhando no espelho.
As meninas que andam devagar na rua olham e reparam, ele sente-se bem, muito bem, querido até.
Ele acelera devagarzinho.
As marchas do carro trocam sozinhas.
Tudo é confortável.
Ele está feliz.
O farol está fechado e ele pára alguns metros antes da faixa.

De repente alguém bate no vidro, e por um segundo ele morre.
O susto transforma uma simples pergunta em uma tentativa de homicídio: Tio, quer bala?
Ele acelera antes dos milésimos de segundos que restam para abrir o semáforo, como uma ejaculação precoce de um menino assustado.
As balas caem e o carro passa a centímetros de uma moça que atravessava de mãos dadas com sua filha.
Ele sente-se mal por um instante.
Não o suficiente para arrepender-se.

Aumenta o volume do rádio e acelera costurando o trânsito que logo pára de novo.

Um acidente, mais um motoboy ferido.
Esse aí pediu pra morrer com certeza.
O pensamento vem como uma navalha, e ele reflete um pouco.
Mas olhando no espelho do carro lembra que vai perder a reunião com o dono daquela multinacional.

A sirene do resgate interrompe seu pensamento.
Os carros se apertam e ele é obrigado a subir na calçada, um pedestre xinga e outro bate na parte de trás do carro.
Ele tenta voltar de ré, mas o carro de trás o deixou preso.
Explode de fúria sem pensar no porque.

Ele sai do carro.
Xinga o taxista que não sai do carro.
Trocam ofensas.
Tinha que ser baiano.
Ele bate no retrovisor do carro do taxista e vai saindo.

A mão tateia o piso embaixo do banco do corsa branco.
Um tiro.

O jardineiro ignora a primavera mais uma vez e deseja que ela morra sêca.